ElaporEles

Todos queriam ser Carmen

A Pequena Notável surge no momento mais rico da música brasileira. Inteligente, talentosa, versátil, brejeira, cria uma escola de interpretação feminina que garante seu lugar na posteridade. Ela brinca com a melodia, sabe ser sensual sem vulgaridade, domina os palcos, tem carisma e borogodó. No auge da fama se deixa seduzir por Hollywood, onde rapidamente conquista e hipnotiza as plateias. Brilha no cinema, encanta nos shows, conquista um séquito de admiradores e fieis adoradores. Como teria sido sua trajetória caso tivesse permanecido no Brasil? Mais de cem anos após seu nascimento, teria surgido alguma outra cantora capaz de se equiparar à Brazilian Bombshell?

Nestes depoimentos, pesquisadores, jornalistas, cineastas, museólogos, críticos de cinema e fãs tentam desvendar os segredos da estrondosa popularidade de Carmen.

José Antonio Nonato de Barros

Ela tinha de fazer um acarajé por dia para provar sua habilidade”

José Antonio Nonato de Barros

Estudioso

Como Carmen definiu seu estilo?

O cinema se instalou na década de 1930 no Brasil e isso provocou uma transformação nas mulheres antenadas, ligadas em moda. Carmen foi sensível a isso, ela dizia que copiava as atrizes do cinema americano. Os Estados Unidos descobriram que poderiam ganhar cabeças com o glamour, isso foi até objeto de música. O cinema falado era culpado dessa transformação. As mulheres que no começo do século eram iaiás se transformaram em mulheres com tudo em cima. O que ficou mais marcado em Carmen foi o estereótipo da baiana, mas ela não era pin-up, ela queria ser elegante. Ela tem uma fase em que se percebe influência do cinema mudo, com pega-rapaz, meio Teda Bara, a boca pequena. Na década de 1930 ela já está com bocão, você percebe que ela faz mis-en-plis, seu cabelo era liso e muito bonito. Já no final dos anos 1930, Carmen começa a usar turbante e em Hollywood explora isso muito mais. Porém já saiu daqui com a ideia de usar turbante porque talvez não tivesse tempo para arrumar o cabelo, ou ganhasse uns centímetros a mais, já que era baixinha.

Você percebe dois focos. Ela valoriza a boca, tinha os dentes incríveis, e os olhos. Infelizmente muitas imagens são em preto-e-branco, mas as pessoas diziam que um olho era amarelo e outro, verde. Nos anos de 1930 ainda vive a fase em que se veste com roupas masculinas. Carmen bolou o traje de cetim (que ela e Aurora usam para interpretar Cantoras do Rádio) e há outros figurinos no museu, ela de chapéu. Ela sabia usar. Inventou a plataforma, que talvez desse uma estabilidade maior no palco. E ainda tem a expressividade, o sorriso que transbordava essa força que faz parte do temperamento dela.

Como foi a infância, a juventude antes da fama?

Naquela época as moças não estudavam tanto. Ela já arranhava francês, porque estudou em colégio de freiras, e foi trabalhar porque precisava, claro. O pai tinha uma barbearia e a mãe cuidava da pensão.

Era uma família simples. Como isso se reflete na vida dela depois?

Eu acho que isso fez com que Carmen nunca perdesse a proximidade com as pessoas, jamais esnobasse. Sua casa nos Estados Unidos fazia parte do tour e ela convidava as pessoas para entrar.

A família teve influência na carreira de Carmen?

Dizem que a irmã mais velha, Olinda, era a artista da família, sestrosa e engraçada. Dizem que Carmen herdou isso dela.

Sob qual aspecto a modernidade de Carmen fica mais evidente?

Primeiro nessa disponibilidade de mudar, essa experimentação, de não se fixar, não ser conservadora.

Qual o figurino mais marcante?

Gosto da roupa do Banana da Terra, de lamê dourado e o chapéu com o farol da barra, e também de um duas-peças de oncinha. Mas é difícil dizer o melhor.

Qual a época mais feliz da vida de Carmen?

Eu acho que foi no Brasil, de 1929 a 1940. Ela era a melhor de todas, ganhava muito, era querida. Estava próxima dos pais, dos irmãos, dos amigos. E cantava coisas leves, agradáveis.

Você acha que a ida aos Estados Unidos fez bem para Carmen?

A desgraça da vida dela foi ter ido para os Estados Unidos, mas ao mesmo tempo não teria tido a projeção caso não tivesse ido. Francisco Alves, Mario Reis, por exemplo, não tiveram.

Mas ela era carioca e enlouqueceu, trabalhava demais, ganhava dinheiro, mas não cuidava da saúde, era pílulas para isso, pílulas para aquilo. Fez plástica e se deu mal. Não cuidava do lazer, é aquela coisa de português, que às 5h00 abre o botequim, tem obsessão por trabalho. Quando Carmen vai para os Estados Unidos pela primeira vez ela dá uma entrevista coletiva e gera até um mal-estar. Quando perguntam o que foi fazer lá, responde “ganhar dinheiro, money”. E ela trabalhava muito. Não era uma modelo, ela dançava, suava. E tinha depressões profundas. Tinha dinheiro, mas sempre foi meio insegura como todo artista. Claro que depois Carmen já tinha criado um tipo e não havia surpresa.

E em relação à arte?

São americanos tentando decifrar a América Latina, uma tragédia. Se você olha com calma os bons tempos ela pode ser um ícone de qualquer parte do mundo. Carmen era uma cantora brasileira, mas virou show woman e não havia como mudar. Ela tinha a roupa, a maquiagem, as mãos. O Samuel Johnson dizia que o patriotismo é o último refúgio dos canalhas. Ela foi uma vítima desse tipo de mentalidade, você sente um patrulhamento ideológico, ela tinha de se posicionar e devia estar de saco cheio de cantar o Brasil, o repertório dela é muito over disso. Quis cantar tango, mas não podia. Carmen tinha de fazer um acarajé por dia para provar sua brasilidade.

Qual o segredo de Carmen Miranda?

Ela tinha gana, queria chegar lá, não é pouco. Casou tarde também, não perdeu tempo com isso, trabalhou. Carmen tinha um santo que botou um fogo inacreditável nela. Eu acho que vai continuar sendo segredo.

César Balbi

Seu domínio com o microfone criou uma nova sonoridade”

César Balbi

Museólogo e diretor do Museu Carmen Miranda

Como você definiria o estilo de Carmen Miranda?

Carmen teve um estilo próprio de apresentação e de cantar. Elegante, brejeira e muito sensual, criou um estilo muito copiado por outros artistas. Na verdade não existe um estilo definido, tanto na escolha das músicas e ritmos, quanto na forma de criação de palco. Ela era simplesmente Carmen Miranda. Seu domínio com o microfone nas rádios e apresentações em festivais no Brasil criou uma nova sonoridade aos ouvidos dos brasileiros. Daí por diante ela inaugurou um novo estilo de artista.

Carmen pode ser considerada uma antecessora do tropicalismo?

Sem dúvida. Ela foi apresentada ao mundo através de seus 14 filmes nos Estados Unidos (1940-1953). Neles, Carmen sempre aparece como uma latina dos trópicos. Brasileira ou não, a personagem mostrava o que era o tropicalismo das Américas.

É claro que Hollywood não tinha conhecimento geográfico das outras duas Américas, mesmo assim Carmen suplantou tudo isso, e foi aceita por todos os latinos, embora sendo criticada por alguns brasileiros que tinham influência na imprensa. Ela fixou a imagem dos trópicos mesmo sem saber disso.

O que a Argentina guardou de suas apresentações?

Além do registro sonoro nas rádios El Mundo e Belgrano, uma boa lembrança e admiração pela artista que ela era. Até hoje ela é muito querida nesse país, a prova disso é a visitação que o Museu Carmen Miranda recebe de muitos argentinos.

Através da fotógrafa alemã, residente na Argentina, Annemarie Henrich, amiga pessoal de Carmen na época em que excursionava por Buenos Aires (de 1931 a 1938), ficaram registradas as melhores fotografias de Carmen Miranda da década de 1930. Elas revelam uma artista elegante, criativa e muito bonita. As pessoas quando veem essa Carmen Miranda sem o figurino de baiana percebem o porquê do seu sucesso absoluto no período da época de ouro da música brasileira.

O que os Estados Unidos guardaram de suas apresentações?

Quando se fala em guardar, tudo fica muito complexo em relação a Carmen Miranda nos Estados Unidos, pois lá ela se projetou para todos os continentes, mesmo depois de sua morte, em agosto de 1955. Os norte-americanos têm verdadeira paixão pela artista, temos isso registrado nos livros de visitantes do Museu. Os Estados Unidos guardaram em arquivos tudo que ela fez, desde seus filmes às suas apresentações em shows, até mesmo alguns de seus figurinos. Lá existe uma verdadeira legião de fãs e, em sua maioria, são colecionadores e arrematam em leilões alguns objetos de Carmen que aparecem vez ou outra.

Com quem ela poderia ser comparada em termos de projeção/influência?

Não consigo fazer essa comparação, já que meu universo é muito ligado à Carmen Miranda como objeto museológico, ou seja, percebo através de seus objetos pesquisados e conservados no Museu, que era uma artista completa em termos de entretenimento musical e artístico. Tudo era muito bem pensado e de boa qualidade. Ela concebia os mínimos detalhes de seus trajes e repertórios. Talvez ela tenha sido precursora de uma Madonna ou de um Michael Jackson, mas eu estaria sendo injusto com outros artistas também competentes e talentosos.

Qual a importância de Carmen Miranda para a moda?

Se eu fosse dar uma nota de 1 a 10, daria nota 10 para o grau de importância de Carmen para a moda. Ela criou uma indumentária única, sem ter criado nenhuma personagem, apenas ela era ela mesma. Isso se comprova em seu estilo pré-baiana em toda a década de 1930, quando as mulheres já a copiavam, depois com a baiana estilizada, e a continuidade com seus trajes sociais nos Estados Unidos. Tudo isso se multiplicou. Seu colorido era harmonioso, sem exageros, mas, talvez, em outras pessoas não caísse muito bem. Tudo ficava muito bem nela. Em minha pesquisa museológica descobri que esse estilo de misturar e customizar da Carmen Miranda era uma atividade nata de seu caráter e personalidade. Ela aprendera muito cedo a costurar e criar seus próprios modelos, depois aprendera a arte da chapelaria, também na adolescência, e isso deu a ela uma expressiva liberdade de criação.

Qual a maior contribuição de Carmen?

Acredito que tenha sido em divulgar e expandir a cultura musical brasileira e a criação de um estilo próprio de apresentação tanto no modo de se vestir como em criar uma nova gestualidade cênica.

Quando surgiu o personagem da baiana?

A partir de novembro de 1938, no ato de seu número musical em seu sexto e último filme no Brasil, Banana da Terra, quando canta a música de Dorival Caymmi, O que é que a baiana tem? Criação própria, que após o lançamento do filme, em janeiro de 1939, passa a ser sua marca registrada, dando entrada numa nova fase de sua carreira.

Qual o figurino mais marcante?

Entre tantos marcantes, elejo um em especial: o traje adaptado da criação de J. Luiz, ou Jotinha – ilustrador da revista Fon-Fon, artista versátil na arte da maquiagem, pintura de retratos e figurinista –, que Carmen usou em fins de novembro de 1938 no Cassino da Urca. A partir de sua criação abriu-se o caminho para outros figurinistas que lhe sucederam nos EUA, pois dessa baiana nasceram todas as fantasias de Carmen na Broadway e em Hollywood. O traje apresenta saia em retalhos de losangos modernistas de veludo em várias cores, o turbante possui duas cestinhas de frutas, a bata em veludo bege e vinho com rendas douradas, deixando à mostra sua sensualidade nos ombros e na barriga. Essa vestimenta exótica da cantora fez grande sucesso em sua estreia na Broadway – 19 de junho de 1939 –, tanto que estimulou a indústria americana a reproduzir seus turbantes e sandálias para os grandes magazines de moda, onde tinham grande aceitação. A Pequena Notável brasileira torna-se The Brazilian Bombshell para o mundo.

Como ela aprendeu a criar suas roupas?

Carmen era a segunda filha de seis irmãos, sua irmã Olinda, mais velha, costurava e passou a ensiná-la ainda bem cedo. Também era costume na época que moças de boa família aprendessem a costurar. Mas Carmen foi além disso, na adolescência passou a criar os próprios modelos. Em sua maioria, eram inspirados em roupas usadas pelas atrizes estrangeiras que via em filmes e revistas. Com apenas 1m52, Carmen, quadris e seios fartos, passou a usar roupas que valorizassem esses dotes naturais. Eram vestidos longos plissados ou justos, com decotes e, principalmente, roupas que valorizassem a sensualidade feminina sem vulgaridade. Foi uma das primeiras a usar terninhos e calças compridas na década de 1930, além de criar sandálias com saltos plataforma que a faziam mais alta e elegante.

Quais seus espetáculos memoráveis?

São muitos, mas posso citar suas apresentações no Cassino da Urca de 1937 a 1939, seus números musicais na Broadway, shows que fez em Londres, em 1948, e em Cuba, 1955. Mas o grande número musical do filme The Gang´s All Here, 1943, em que aparece com bananas e morangos é, sem dúvida, memorável.

Qual a importância de Carmen para a cultura brasileira?

O seu legado artístico-musical. Carmen foi inovadora em tudo que fez, mas seu repertório musical da década de 1930 é visto e revisto até hoje. Ela registrou em sua voz e interpretação, músicas inesquecíveis, além de revelar grandes compositores.

Qual a sua maior contribuição para o cinema?

A criação demolidora de uma imagem viva e esfuziante. O colorido e decote dos trajes, os gestos, os olhos, o ondular das mãos e quadris, tudo se equilibrava numa única figura: Carmen Miranda. Depois de sua aparição em tela technicolor em 1940, os produtores de Hollywood descobriram uma nova maneira de fazer musicais.

Qual a sua maior contribuição para a música?

A inauguração de uma nova maneira de cantar, de usar o microfone como recurso vocal e também de interpretar as músicas com peculiaridade. Considero Carmen Miranda a pioneira em interpretação do novo estilo musical que surgia no Brasil na década de 1930, ela praticamente abriu as portas para a MPB.

Pedro Butcher

Ela atuou com grandes nomes como Grouxo Marx e Don Ameche”

Pedro Butcher

Crítico de cinema da Folha de S. Paulo

O que Carmen representou no cinema?

Eu acho que certamente é a do período americano. Os filmes da Fox e, principalmente, Busby Berkeley, mestre de musicais, foi revolucionário. Ele usava grafismos, abstração, fazia isso com os corpos das pessoas, com a câmera. Tem o número The Lady In The Tutti Frutti Hat, por exemplo, que é o mais impressionante e divertido. Era extravagante, gráfico. Isso influenciou o design do cinema. E essa soma de talento dele com o talento da Carmen revolucionou em termos de design mesmo, de desenhar. O que ele fazia era usar os corpos e figurinos para criar um desenho inusitado. Sem dúvida, só nesse número, já valeria a participação dela. No entanto, ele é também cruel, porque a representação da latinidade e do Brasil ao mesmo tempo que foi divulgada, confinou Carmen num certo estereótipo, mas isso é típico da indústria.

Que comparação pode ser feita entre a participação de Carmen nos filmes brasileiros e americanos?

Nos Brasil a música sempre foi mais forte do que o cinema, há uma produção cultural das mais ricas. O cinema está para os Estados Unidos como a música para o Brasil. São potências culturais da mesma forma. Há muitos números musicais muito bons, como o que ela canta com Aurora em Banana da Terra ou com Dorival Caymmi no número O que é que a Baiana Tem. A tradição brasileira é realista, influenciada pela nouvelle vague.

Com quem sua figura poderia ser comparada nos dias de hoje, em termos de projeção?

Eu acho que é muito difícil fazer uma comparação, porque temos de considerar a época, são tipos de fama diferentes. A cultura mudou muito, a cultura de massa está em crise, e ela foi uma das estrelas do período em que o cinema era muito popular. Acho que não existe comparação, houve um ou outro que tentou, mas não chegou nem perto.

Qual o filme mais importante?

Eu acho que o filme do Busby Berkeley. As comédias da Fox que são clássicas são especialmente boas. Ela atuou com grandes nomes da época, Groucho Marx, Don Ameche.

Carmen sempre representava o mesmo papel?

Ela era ela, mas no cinema isso acontece mesmo. O John Wayne também era ele. Muitas vezes é mais correto ser quem você é mesmo, a não ser que seja o Marlon Brando. A representação no cinema costuma abolir a representação tradicional do teatro, não vejo isso como um dado negativo. Ao contrário, ela não só foi ela mesma, como foi autêntica e transformada em ícone, por isso é tão amada até hoje. Ela criou um personagem único, a Carmen Miranda.

A ida de Carmen para os EUA fez bem à sua arte?

Isso é difícil dizer. Acho que teve um lado perverso que a aprisionou de alguma forma. A indústria do cinema é uma máquina de criar ícones. Não sei se do ponto de vista pessoal foi bom, mas era inevitável para mudar as coisas. Se não fossem pessoas como essas não haveria mudança.

Ricardo Kondrat

Carmen ganhava mais do que Greta Garbo”

Ricardo Kondrat

Qual a influência de sua irmã mais velha em sua escolha profissional?

Sua irmã era ótima costureira e também ótima cantora. Tinha uma linda voz. Chamava-se Olinda e morreu muito nova, de tuberculose de paixão. Ela namorou um homem no Rio de Janeiro e se decepcionou muito quando descobriu que ele era casado. Ficou tuberculosa e foi se tratar em Portugal, onde morreu aos 23 anos.

Com quem sua figura poderia ser comparada nos dias de hoje, em termos de projeção?

Com Madonna, que já disse que se projeta um pouco em Carmen. Aqui no Brasil alguns personagens tentam fazer com que ela seja lembrada, como Aline Serrano, Lana Miranda, transformista, e o saudoso Erick Barreto, que fez muito bem a performance de Carmen.

Quem a apelidou de Carmen?

Seu verdadeiro nome era Maria do Carmo Miranda da Cunha. O apelido veio de um tio ainda em Portugal. Depois ela adotou esse nome porque adorava Carmen, a ópera de Bizet.

Carmen guardou mágoa quando foi considerada americanizada?

Sim, ela ficou até deprimida. Carmen havia marcado vários shows no Cassino da Urca e na primeira noite foi mostrar aos convidados o que tinha aprendido nos Estados Unidos. Entrou falando inglês. Como eram convidados da alta sociedade do Rio de Janeiro, convidados de Dona Alzirinha Vargas, filha de Getúlio Vargas, eles não a aplaudiram muito, como Carmen esperava, e até deram risadas. Ela se magoou. Depois disso, pediu para o compositor Vicente Paiva algumas músicas em resposta ao povo brasileiro (Disseram que eu voltei Americanizada, Disso que eu Gosto, Voltei pro Morro, Diz que tem, entre outras).

Quando Carmen foi mais feliz?

Década de 1930, até 1947, quando se casou e passou a ter muitos problemas com o marido, até sua morte em 1955.

Como Carmen se sentia a respeito dos pagamentos exorbitantes que tinha que fazer ao Imposto de Renda dos Estados Unidos?

Ela foi a artista que mais pagou impostos em 1947, pois era a artista que mais ganhava dinheiro nos Estados Unidos. Ganhava mais do que Greta Garbo, a maior artista da época.

Qual o maior orgulho de Carmen?

Ter colocado os pés e as mãos na Calçada da Fama, representando o povo brasileiro. Ela estava havia apenas seis meses nos Estados Unidos.

O que a artista gostava de fazer em seus momentos de lazer?

Receber seus amigos com a famosa feijoada brasileira. Na casa de Carmen iam muitos brasileiros, era uma espécie de embaixada do Brasil nos Estados Unidos.

De que ela gostava mais que a chamassem?

Ela gostava de ser chamada A Pequena Notável.

Do que ela mais gostava nos Estados Unidos?

De ganhar bem para ajudar a todos que precisavam dela no Brasil, entre familiares e amigos. Ela mandava dinheiro a quem estivesse precisando.

Era muito vaidosa?

Com certeza. A prova disso são as fotos e filmagens que temos disponíveis.

Como era Carmen em sua vida pessoal. Ela teve muitas paixões?

Carmen sempre foi namoradeira, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos. Quem ela amou mesmo foi Mario Cunha. Dizem que ele não pode se casar com ela porque as cantoras de rádio na época não eram bem vistas. Por pressão da mãe dele, eles não se casaram. Ele morreu, solteiro, e dizem que a amou até o fim. Agora imagine essa mãe vendo todos os sucessos dela no cinema?

A ida de Carmen para os EUA fez bem à sua arte?

Com certeza, pois ela se tornou conhecida no mundo todo. Ela é a única mulher brasileira que, como Pelé, é conhecida mundialmente. Se tivesse ficado somente no Brasil, não teria feito tanto sucesso nem seria tão lembrada. Provavelmente seria esquecida como Francisco Alves, Emilinha Borba, Orlando Silva, Dalva de Oliveira, Dircinha e Linda Batista, cantoras e cantores que são da mesma época e fizeram sucesso, mas acabaram no esquecimento. O Brasil é um país sem memória.

No que a artista foi mais moderna e à frente do seu tempo?

Ela estava adiantada cem anos. A prova disso são suas roupas. Os sapatos plataforma que ela inventou e nunca patenteou hoje, mais de 50 anos depois, fazem sucesso.

Ná Ozzetti

Musicalmente ela era visionária”

Ná Ozzetti

Cantora, lançou em maio de 2009 o CD Balangandãs, com repertório de compositores que Carmen gravou

Qual a maior contribuição de Carmen para a música?

A Carmen foi uma das vozes para tudo o que estava acontecendo no Rio. Ela reuniu as pessoas. Com Noel Rosa, Lamartine Babo, Sinhô, que são da primeira metade do século 20, que é o período em que Carmen atuou, começa o processo de canção popular brasileira, de tudo o que a gente herdou. As canções tinham muito de coloquial, de como se falava, eram crônicas urbanas que nasciam através das canções. Quando comecei a ouvir fiquei impressionada pela forma como ela cantava, que seria uma referência para coisas que vieram depois, até para João Gilberto. Ali era o início de tudo.

No que a bossa nova faz referência a Carmen?

Eu acho que especificamente o João Gilberto. O João transformou toda aquela exuberância musical da Carmen em uma outra exuberância própria dele, na forma como ele toca violão, como ele articula o ritmo do violão, como ele trabalha harmonia e alonga o seu canto, recua, economiza, brinca com os ritmos. É como se ele mostrasse por quantos caminhos se pode seguir na interpretação. Com a Carmen era a mesma coisa, ela brincava com os elementos musicais. Eu sinto que o João traduziu para uma forma própria o que ela fazia.

Carmen pode ser considerada uma antecessora do tropicalismo?

Eu acho que sim por que o movimento tropicalista foi um momento em que os artistas pensaram e projetaram tudo o que tinha até então. O tropicalismo comenta o que surgiu e a Carmen como uma importância na música.

O que tinha ela tinha de diferente?

Ela tinha uma forma de brincar com aquilo que estava nascendo como samba, principalmente. A marcha acho que era mais padrão, mas no samba ela percebeu que estava nascendo ali uma forma rítmica que era própria nossa, do Brasil. Ela entendeu isso e tinha uma forma, uma riqueza para brincar com esses elementos rítmicos e melódicos. Aí passou a dominar e a estimular os músicos. Na minha opinião, é como a Billie Holiday com os jazzistas.

Além disso ela tinha um humor, ela valorizava como ninguém o que a canção tinha, os detalhes que o compositor queria dizer e trazia à tona a letra, brincava com a melodia com uma graça coloquial de falar. Ela dominava completamente. Ela entendia o samba, e contribuiu como foi porta-voz de muita coisa que estava sendo criada na época e que veio a se tornar a música brasileira.

Quem eram suas rivais?

Eu li que teve uma época que ela e Aracy de Almeida disputavam as paradas de sucesso. A Aracy é maravilhosa, são estilos diferentes, é outra forma de ser tão maravilhosa, mas Carmen foi única no que ela se propôs a fazer e até hoje não há nada que se compare. Uma vez li uma declaração do Caetano dizendo que ela era como Charles Chaplin para o cinema. São ícones, nunca mais vai surgir igual.

Quais foram suas influências?

Isso é que é incrível. Tudo estava nascendo ali e ela ajudou a criar o que a gente herdou. Ela inaugurou muita coisa porque tinha essa capacidade de iluminar e centralizar.

Quais eram seus compositores favoritos?

O compositor que eu observo que me chama mais atenção é o Assis Valente, há uma química entre eles. Ela entende a linguagem e vice-versa. Ele compôs para a voz dela. E tem o Sinval Silva, o Ary Barroso, o Caymmi.

Que gênero musical foi o preferido de Carmen?

Ela gravou muita marcha, mas acho as marchas mais comportadas ou talvez seja mais definido. Acho que ela tem mais abertura e exuberância com o samba, como intérprete de samba.

Qual a melhor música de Carmen?

Ah, tem muitas. Camisa Listada, Adeus Batucada, Gente Bamba…

Carmen está presente no estilo de cantoras brasileiras atuais?

Eu acho que de certa forma, sim, mas talvez nem percebam a contribuição dela. Ela está presente. É que as pessoas não têm oportunidade de ouvir gravações originais dela, o que seria muito importante porque o Brasil não cultiva. No decorrer do tempo o canto foi se transformando, com mais economia da emissão, as firulas todas, a gente não vê mais, é raro, na forma de brincar ritmicamente. Esse jeito eu vejo mais diretamente na bossa nova, embora a própria bossa seja fruto direto do que gerações anteriores fizeram.

A ida de Carmen para os EUA fez bem à sua arte?

Eu acho que a ida para os Estados Unidos foi uma virada de página. Dali para frente ela passou a ser artista de Hollywood. A impressão que tenho é de que curtiu, tirando os problemas, devia ser fascinante. Mas ela não estava mais no Rio, que era a cidade que a inspirava para criar o que tinha criado. E, pessoalmente, ouvindo a discografia, acho que o auge musical foi nos anos anteriores à ida aos Estados Unidos. No lado performático cresceu mais, musicalmente o auge foi até a ida aos Estados Unidos. Li na biografia que a Fox não deixava que artistas lançassem disco, para não concorrer. A discografia é bem menor, ela gravou com mais qualidade, por outro lado e a música brasileira já estava caminhando, surgiram grandes artistas. Mas eu me pergunto o que teria sido se ela não tivesse ido.

Como você definiria o estilo da Carmen Miranda?

É um estilo que reflete a personalidade dela: exuberante, uma alegria verdadeira e irradia essa alegria, talento para valorizar e iluminar as coisas que faz. Esse traço se reflete nas formas de se vestir e cantar o samba. Ela criou um estilo único de ser na época em que viveu.

No que a artista foi mais moderna e à frente do seu tempo?

Em tudo. Na postura feminina, bem à frente. Musicalmente também, era visionária. Ela nasceu com a música brasileira, como processo de uma música que se tornaria patrimônio cultural nosso. Ela contribuiu demais em tudo, até no próprio visual, até hoje os figurinos são modernos.

O que é que a Carmen tinha? Qual o segredo de sua popularidade?

Tinha um carisma danado, uma capacidade de iluminar o que fazia. Nos filmes você não consegue desgrudar os olhos. Ouvindo as gravações, também é fascinante. Além disso, era antenada, tinha vontade de participar e era aberta para coisas que estavam acontecendo.

Ela centralizava muitas dessas coisas e, com isso, estimulou a criação de novas composições que estimulavam o movimento em torno de artistas de rádio e também a população a valorizar a própria música.

Sergio Cabral

Ela foi a cantora que consolidou o rádio”

Sergio Cabral

Jornalista e pesquisador musical

Qual a maior contribuição de Carmen para a música?

Eu concordo com Ruy Castro quando ele diz que a Carmen criou a escola da interpretação feminina na música popular brasileira, com a bossa que ela tinha, o jeito de interpretar. Tanto é verdade que todas queriam ser Carmen Miranda, até quem não tinha nada a ver com ela, como Aracy de Almeida, Elizeth Cardoso e tantas outras.

O que Carmen significou para o rádio?

Ela foi a cantora que consolidou o rádio. Ela surgiu no momento mais rico da música brasileira, do rádio e das gravadoras. O rádio era um novo capítulo da evolução da tecnologia, o som melhorou e esse momento permitiu o surgimento de uma geração que tinha Noel Rosa, Ary Barroso, Lamartine Babo, Ismael Silva, João de Barro. O rádio e a própria Carmen são tão importantes que a Rádio Mayrink Veiga, para se fortalecer, recorreu a Carmen e a contratou com exclusividade.

Quem eram suas rivais?

Ela não tinha adversários. Talvez homens como Francisco Alves e Orlando Silva. Fora a Carmen, não havia outra expressão. A indústria achava que mulher não vendia disco, até a década de 1970 as gravadoras pensavam assim. Mesmo as famosas como Emilinha e Marlene não vendiam tanto. Acho que só Clara Nunes depois, a própria Elis não vendia assim.

Quais foram suas influências?

A Lapa. É claro que ela ouvia os discos da época, mas a Lapa foi a sua grande influência.

O Bando da Lua influenciou seu estilo?

É possível que sim porque o Aluísio sempre teve uma tendência para produzir e dirigir. Então ele pode ter dado um palpite.

Que compositores Carmen revelou?

Ah, vários, Dorival Caymmi, Assis Valente, Synval Silva.

Que gênero musical foi o preferido de Carmen?

É possível que seja o tango, sim, ouvia-se muito tango na época.

Quem foi o compositor que ela mais gravou? Ela tinha um favorito?

Talvez o que ela mais gravou tenha sido o Ary Barroso.

Aurora foi sua melhor parceira vocal?

Carmen não tinha parceiros. Com a irmã ela cantou, sim, e Aurora tinha uma voz linda. Mas o que acontecia é que se cantava em duplas, era moda, influência do teatro de revista. Mas não era uma parceria. O Almirante foi importante na vida dela, e ela também gravou com o Barbosa Junior, o Luiz Barbosa. Acho uma chateação não ter mais isso.

Qual seu primeiro sucesso?

Foi Taí.

Carmen está presente no estilo de cantoras brasileiras atuais?

Hoje está tudo muito diluído. Ela era um charme sem igual. Nunca houve cantora e intérprete como ela e com charme maior do que o dela. Mas acho que o Ney Matogrosso é uma Carmen Miranda.

A ida de Carmen para os EUA fez bem à sua arte?

Boa pergunta. Eu preferia ela cantando os sambinhas, mas já que ela foi, deve ter aprendido alguma coisa. Nada que me prenda atenção, mas teve a influência a várias pessoas (frase confusa. Carmen teria tido a influência de várias pessoas ou influenciado várias pessoas? A conferir)

O que é que a Carmen tinha? Qual o segredo de sua popularidade?

Ah, seu eu soubesse estaria milionário.

Helena Solberg

Nosso songbook da época existe na voz dela”

Helena Solberg

Diretora, com David Meyer, do documentário Banana is My Business

Qual a importância de resgatar um personagem como Carmen Miranda?

A vida de Carmen está inserida em um momento de muitas transformações na nossa história. Esses momentos podem determinar muitas vezes a vida de um indivíduo. Não estou falando de um determinismo, em que não temos a possibilidade de escolher, mas sim das chances que nos são dadas e o que fazemos com elas. A Segunda Guerra Mundial fez com que os americanos criassem a Política da Boa Vizinhança que teve temporariamente um impacto em nosso continente.

A trajetória de Carmen nos ajuda a compreender de certa forma o que estava em jogo e que imagem nossa interessava ser divulgada por eles. Além desse contexto existe a maneira como Carmen aceita um desafio que transformaria sua vida para sempre. Sua vida tem os três atos de uma tragédia clássica. Acho importante relembrar também que Carmen foi uma das artistas mais importantes da nossa história, mas esse fato ficou esquecido durante algum tempo devido à sua longa ausência do País e também porque existia um certo tipo de preconceito contra essa menina de origem portuguesa, que começou pobre, e que alcançou a fama cantando música ‘negra.’ Mas qualquer um que procurar saber quem gravou quase todas as músicas mais famosas dos anos de ouro (anos 30) ficará impressionado de saber que foi Carmen Miranda. O nosso songbook daquela época existe na voz dela. Um talento desses vem somente de vez em quando e não é possível que ela não tenha o devido reconhecimento que merece.

Com quem sua figura poderia ser comparada nos dias de hoje, em termos de projeção?

Acho praticamente impossível encontrar um personagem parecido porque, como disse anteriormente, ela é o produto de um momento muito específico em nossa cultura. Talvez por compartilhar uma origem pobre, atravessar supostos limites raciais e de alcançar uma fama extraordinária, o Elvis Presley tem alguma coisa a ver. Talvez mais recente, Michael Jackson, cujo impacto foi mundial.

Qual o filme mais importante?

Todos temos nossos filmes favoritos. Os meus são o filme de Busby Berkeley, The Gang’s All Here, e That Night in Rio. Acho que foram também os que tiveram maior audiência.

Entre os filmes feitos no Brasil, quais ainda podem ser vistos?

Alô Alô Carnaval e Banana da Terra. Infelizmente, o filme brasileiro Estudantes sumiu completamente.

Quantos filmes Carmen fez?

Me parece que foram 14 (foram 20 no total).

Carmen sempre representava o mesmo papel?

A 20th Century Fox queria preservar a imagem e o impacto do seu primeiro sucesso na Broadway, The Streets of Paris, em que apareceu vestida de “Baiana.” Nos filmes de Hollywood, ela poderia ser brasileira, cubana, porto-riquenha, tanto fazia. Era sempre “a latina” fogosa, sensual, passional e meio ridícula.

Com quem ela mais gostou de contracenar?

Temos pelo menos três Carmens: a Brasileira, impecável, chique e ao mesmo tempo brega, que era capaz de hipnotizar a plateia. Esse poder ela mantinha nos EUA; Aloysio de Oliveira sempre lembrava que ficava atrás dela tocando guitarra e podia ver as caras das pessoas na plateia, hipnotizadas. Temos a Carmen dos filmes de Hollywood, que não somente cantava de uma forma única, como também dançava, rebolava, de uma maneira que ninguém poderia tirar os olhos. E temos a Carmen mais para o fim da carreira, que já se autorridicularizava, fazia uma caricatura da própria caricatura, e pedia para as pessoas que puxassem seus cabelos para mostrar que eram verdadeiros. Essa última Carmen eu acho a mais trágica, ao mesmo tempo em que continua criativa e engraçada. Acho que Carmen criou uma imagem psicodélica e quase kitsch que até hoje é incomparável.

A ida de Carmen para os EUA fez bem à sua arte?

Carmen sai do Brasil em um momento em que sua carreira estava no auge e ela poderia ter ainda se desenvolvido em muitas direções inesperadas como intérprete, com sua surpreendente versatilidade e inteligência. Acho que ela foi de certa forma “enquadrada” numa receita que interessava à Twentieth Century Fox. Ela se transformou numa espécie de mina de ouro para eles. Uma mina que foi explorada com muito afinco. É óbvio que houve uma colaboração da sua parte. A tentação deveria ter sido irresistível; quantos conseguiriam resistir à fama?

O que a Argentina guardou de suas apresentações?

Argentina protestou formalmente quando o filme Down Argentine Way estreou em Buenos Aires, pois os personagens argentinos eram ridículos e caricatos. Carmen só apareceu no filme cantando, com seu nome de verdade. Não tinha um papel como atriz. Mas tanto na Argentina, quanto na Inglaterra, nos EUA, na Austrália, ela continua até hoje sendo um personagem.

O que os Estados Unidos guardam de suas apresentações?

A imagem da Carmen nos EUA é talvez mais forte ainda do que no Brasil. Existem os filmes da Twentieth Century Fox: Down Argentine Way (Serenata Tropical), That Night in Rio (Uma Noite no Rio), Springtime in the Rockies (Minha Secretária Brasileira), Greenwich Village (Serenata Boêmia) e The Gang’s All Here (Entre a Loura e a Morena) que são soufflés, bobagens, mas feitos com tanto panache que agradam até hoje.
Ela era um tal “hit” que logo em seguida entrou em mil outras mídias, muitas vezes nos “cartoons”. Ela aparece nos cartoons animados de Popeye, Tom and Jerry, Daffy Duck; sitcoms como I Love Lucy, inúmeras aparições nos programas de variedade do início da televisão americana como Texaco Star Theatre com Milton Berle. Fora isso, foi imitada e caricaturada por Bob Hope, Jerry Lewis, Lucille Ball, Imogene Coca, Mickey Rooney… Até hoje crianças se vestem de Carmen Miranda na noite de Halloween. É uma loucura.